Recurso Extraordinário 955.227: a violação da coisa julgada tributária e a perigosa afronta à segurança jurídica

O STF formou maioria [1] para desconsiderar coisa julgada estabelecida há décadas e permitir a interrupção automática dos efeitos das sentenças transitadas em julgado cuja conclusão seja diversa da adotada em julgamento proferido em ação direta ou em sede de repercussão geral [2].

No caso concreto ( RE 955.227), o contribuinte impetrou mandado de segurança contra ato de Delegado da Receita Federal que deixou de cumprir sentença judicial que havia declarado a inconstitucionalidade da CSLL e garantido ao contribuinte o direito de não recolher a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CLSS). O pronunciamento judicial havia transitado em julgado em 16/12/1992.

Embora houvesse título judicial transitado em julgado em favor do contribuinte reconhecendo a inconstitucionalidade da contribuição, o ato coator objeto do mandado de segurança afastou a aplicação dos efeitos da sentença judicial transitada em julgado sob o argumento de que o STF reconheceu a constitucionalidade da CSLL quando do julgamento da ADI nº 15, finalizado em 14/06/2007.

Ao votar pela legalidade do ato coator, o relator do RE 955.227, Ministro Luiz Roberto Barroso, entendeu que os princípios da igualdade tributária e da livre concorrência (art. 150II, e art. 170 da CF) deveriam prevalecer sobre a segurança jurídica (art. XXXVI, da CF), uma vez que os contribuintes que se encontram em situação equivalente ao contribuinte que detém o título judicial reconhecendo a inconstitucionalidade da CSLL não podem ser tratados de modo desigual.

Ou seja, o STF decidiu que a CSLL é exigível de todos os contribuintes que se enquadram na hipótese de incidência da contribuição, até mesmo daqueles que detém título judicial transitado em julgado reconhecendo a inexigibilidade em decorrência da declaração da inconstitucionalidade do tributo.

Com toda vênia, o nosso entendimento é diverso ao que vem sendo firmado pelo STF, especialmente se considerarmos as peculiaridades do caso concreto julgado no RE 955.227.

Ao propor a ponderação entre os princípios constitucionais em colisão, o Ministro Luiz Roberto Barroso dispõe que a coisa julgada é flexibilizada pelo art. 505I, do CPC, segundo o qual “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, hipótese em que será possível pedir a revisão do definido em sentença”.

Ocorre que o art. 505I, do CPC é claramente inaplicável ao RE 955.227 por diversas razões, sendo a primeira delas bastante simples: não há como dispositivo legal impedir a produção de efeitos de uma garantia constitucional (art. 5º., XXXVI), sob pena de absoluta inversão de hierarquia de normas.

Não bastasse a necessidade de respeitar a garantia constitucional da intangibilidade da coisa julgada, é certo que inexiste neste caso específico modificação no estado de fato ou de direito, já que toda lei é presumidamente constitucional, e assim o era no momento da decisão que transitou em julgado. Não por outra razão que a declaração de inconstitucionalidade de uma determinada norma pode gerar, nos termos do CPC, a inexigibilidade de título judicial (art. 525, §§ 12 e 15 [3]), mas não há previsão semelhante para a declaração de constitucionalidade.

No caso da CSLL, a situação é ainda mais complicada, pois o plenário do STF já havia reconhecido a constitucionalidade da CSLL ao apreciar o RE 138.284 em julho de 1992, antes do trânsito em julgado da sentença que reconheceu a inconstitucionalidade da CSLL e originou o RE 955.227, que está sendo julgado pelo STF.

O próprio voto do Ministro Luiz Roberto Barroso reconhece que o STF já entendia pela constitucionalidade da CSLL antes mesmo da decisão proferida no julgamento da ADI nº 15, em 14/06/2007, razão pela qual não há qualquer respaldo fático ou jurídico para se falar em mudança de fato ou de direito.

Ainda que se admitisse que a ADI nº 15 tivesse modificado o estado de direito, já que até então as decisões que haviam sido proferidas pelo STF acerca da matéria não possuíam efeito vinculante e eficácia erga omnes porquanto proferidas em recursos extraordinários anteriormente à sistemática da repercussão geral, inexiste permissivo legal ou constitucional a autorizar a imediata interrupção dos efeitos de sentenças transitadas em julgado.

Isso porque, tanto o CPC/73 – vigente na época do julgamento da ADI nº 15 – como o CPC/15, estabelecem procedimentos judiciais para a superação da coisa julgada.

O art. 505I, do CPC/15 e o art. 471I, do CPC/73, preveem a possibilidade de a parte pedir a revisão judicial da sentença se identificada a modificação posterior ao pronunciamento jurisdicional no “estado de fato ou de direito”, inexistindo autorização para a interrupção automática dos efeitos da sentença transitada em julgado.

De igual modo, os artigos 525§ 12 e 535§ 5º do CPC/15, que estabelecem a inexigibilidade de título fundado em decisão declarada inconstitucional ou incompatível com a Constituição, também não autorizam a interrupção imediata dos efeitos da sentença transitada em julgado: se a decisão do STF for posterior ao trânsito em julgado daquela que foi proferida em sentido contrário, cabe ação rescisória.

CPC /15 é expresso ao dispor que o prazo de 2 anos para ação rescisória começa a fluir a partir do trânsito em julgado da decisão do STF que reconheça a inconstitucionalidade da lei, do ato normativo ou da interpretação aplicada pela decisão a ser rescindida, conforme art. 525, § 15, e art. 535, § 8º.

Cabe às Fazendas Públicas, portanto, recorrer das decisões que lhes são contrárias – o que poderia ter sido procedido inclusive no caso do RE 955.227, já que o STF já tinha declarado a constitucionalidade da CSLL antes do trânsito em julgado da sentença – ou então propor a competente ação rescisória no prazo legal de 2 anos.

Aqui, observa-se que o legislador inseriu na lei processual mecanismos de ponderação dos princípios constitucionais da segurança jurídica, igualdade tributária e livre concorrência, não cabendo ao Poder Judiciário ignorar a opção legislativa e tratar a igualdade tributária e livre concorrência como princípios absolutos em detrimento da segurança jurídica.

Não pode o STF socorrer às Fazendas Públicas que permaneceram inertes e deixam de utilizar os mecanismos processuais adequados, sob pena de afronta direta à segurança jurídica e ao devido processo legal. O judiciário não pode ser parcial e defender os interesses de um dos pólos na ação judicial, por mais que essa parte seja a Fazenda Pública. Para isso existem os advogados públicos.

É bastante claro esse objetivo do STF em trecho do voto do Ministro Luiz Roberto Barroso, no qual destaca que o valor somado das autuações das pessoas jurídicas que possuem decisão transitada em julgado pela inconstitucionalidade da CSLL chegava a R$ 1,2 bilhão no ano de 2016.

Esse argumento revela que o STF pode estar muito mais preocupado com os cofres públicos do que com a garantia da igualdade tributária entre os contribuintes. Entretanto, esquece que esse tipo de “movimento”, por afrontar a segurança jurídica, espanta investidores e acaba por incentivar a fuga de capitais do país, gerando um “efeito nocivo em cadeia, que acaba no prejuízo da qualidade de vida da própria população” [5].

O STF entra em um looping paradoxal: em nome do resguardo aos cofres públicos, relativiza a segurança jurídica e acaba por prejudicar a saúde econômico-financeira do país.


[1] Até agora acompanharam integralmente o relator os Ministros Dias Toffoli, Alexandre de Morais e Rosa Weber. O Ministro Gilmar Mendes acompanhou Luiz Roberto Barroso com ressalva, divergindo pontualmente por entendem desnecessária a aplicação dos princípios da anterioridade anual e da noventena.

[2] 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instauração do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo

[3] Deve-se registrar que a ausência de limitação temporal no§ 155 do art.5255 (a rescisória sine die) resulta na sua inconstitucionalidade, por frontal ofensa à segurança jurídica, garantida no art. º, caput e XXXVI da CF F.

[4] Conforme adiantado, entendemos que esses dispositivos ofendem a Constituição o por representarem situação de inequívoca insegurança jurídica decorrente da inexistência de prazo para que se possa, futura e eventualmente, ser declarada a inconstitucionalidade da norma.

[5] Insegurança jurídica prejudica avanço da infraestrutura brasileira. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/segurança-juridica-desenvolvimento/inseguranca-juridica-p…. Acesso em: 20 nov. 2022.

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